
Postal alusivo a Viagens na Minha Terra, a partir de ilustração de Aurélia de Sousa.
Edição fac-similada da Lithografia Nacional do Porto (Colecção «Homenagem a Garrett» da Biblioteca Almeida Garrett)
Terminamos com este fragmento (do final de Viagens na Minha Terra), o nosso périplo pela obra de Almeida Garrett, autor que nos ocupou durante grande parte do ano lectivo. Da variedade, profundidade e inovação da sua escrita demos conta, recordando o estilo romântico que iniciou e a importância do seu imaginário na literatura portuguesa nascida com o advento do liberalismo (século XIX).
Como não podia deixar de ser, também as suas ilusões iniciais foram corrigidas, quando à euforia do movimento reformador se seguiu a decepção dos velhos hábitos perpetuados sob nova roupagens. Lendo o excerto seguinte, fica-nos a ideia de que Almeida Garrett, para além de escritor, foi um sociólogo, um homem atento às metamorfoses da sociedade do seu tempo…
Todas as viagens têm um princípio e um fim. A nossa também… Aos nossos leitores recomendamos vivamente a pesquisa e uma atenção redobrada sobre este escritor nascido no Porto e um dos mais polivalentes de toda a História da Literatura de Língua Portuguesa.
— Errámos e sem remédio. A sociedade já não é o que foi, não pode tornar a ser o que era: — mas mito menos ainda pode ser o que é. O que há-de ser, não sei. Deus proverá.
Dito isto, o frade benzeu-se, pegou no seu breviário e pôs-se a rezar. A velha dobava sempre, sempre. Eu levantei-me, contemplei-os ambos alguns segundos. Nenhum me deu mais atenção nem pareceu cônscio da minha estada ali.
Sentia-me como na presença da morte e aterrei-me.
Fiz um esforço sobre mim mesmo, fui deliberadamente ao meu cavalo, montei, piquei desesperadamente de esporas, e não parei senão no Cartaxo.
Encontrei ali os meus companheiros; era tarde, fomos ficar fora da vila á hospedeira casa do Sr. L. S.
Rimos e folgámos até alta noite: o resto dormimos a sono solto.
Mas eu sonhei com o frade, com a velha — e com uma enorme constelação de barões que luziam num céu de papel, donde choviam, como farrapos de neve, numa noite polar, notas azuis, verdes, brancas, amarelas, de todas as cores e matizes possíveis. Eram milhões e milhões de milhões...
Nunca vi tanto milhão, nem ouvi falar de tanta riqueza senão nas Mil e uma noites.
Acordei no outro dia e não vi nada... só uns pobres que pediam esmola à porta.
Meti a mão na algibeira, e não achei senão notas... papéis!
Parti para Lisboa cheio de agoiros, de enguiços e de tristes pressentimentos.
O vapor vinha quase vazio, mas nem por isso andou mais depressa.
Eram boas cinco horas da tarde quando desembarcamos no Terreiro do Paço.
Assim terminou a minha viagem a Santarém; e assim termina este livro.
Tenho visto alguma coisa do mundo, e apontado alguma coisa do que vi. De todas quantas viagens porém fiz, as que mais me interessaram sempre foram as viagens na minha terra.
Se assim pensares, leitor benévolo, quem sabe? Pode ser que eu tome outra vez o bordão de romeiro, e vá peregrinando por esse Portugal fora, em busca de histórias para te contar.
Nos caminhos-de-ferro dos barões é que eu juro não andar.
Escusada é a jura, porém.
Se as estradas fossem de papel, fá-la-iam, não digo que não.
Mas de metal!
Que tenha o governo juízo, que as faça de pedra, que pode, e viajaremos com muito prazer e com muita utilidade e proveito na nossa boa terra.
Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra (Porto Editora)