
O livro que dá alma a esta recensão intitula-se Contos e foi escrito por Virgílio Ferreira, que é, sobretudo, um romancista.
Esta obra é uma colectânea de pequenas narrativas que o autor escreveu ao longo de décadas. Algumas delas foram publicadas em jornais e revistas, outras foram apenas bocados de imaginação a que Virgílio Ferreira não quis dar continuidade. Este livro foi lançado em 1976: aliás, a sua nota introdutória foi assinada em 14.06.1976.
Entre outros, estão neste livro contos como «A Galinha», «Mãe Genoveva», «A Estrela», «O Morto», «A palavra mágica» e «Gló».
Devo dizer que nunca havia lido nada deste autor, mas apercebi-me já de algumas características presentes em grande parte dos contos. Uma delas é, por assim dizer, o “cómico”. Não, não que estas narrações sejam para rir, mas Virgílio Ferreira atribui a grande parte dos contos alguma ironia e sarcasmo subtis, que se fazem notar pela lição que o conto transmite. Outra das características que observei é que o autor é tem um fascínio louco, ou talvez um medo imenso, da morte. Em cada história, salvo raras excepções, morre sempre alguém.
Poderia falar de um conto de que tenha gostado em especial, mas não há apenas um que se destaque, pelo que terei de falar dos dois contos que com igual intensidade me cativaram mais. E são eles «A Galinha» e «Saturno». Estes contos falam de temas bastante diferentes.
Principiarei a minha abordagem por «A Galinha», que nos fala da inveja e da ganância, um conto que, apesar de nos divertir, passa subconscientemente uma lição. É facto bastante sarcástico e divertido.
Eis um excerto:
«E chegada a coisa a este ponto, era a altura de se formarem partidos, como sempre que há uma razão para se formarem partidos. Velhos ódios, invejas, ciúmes vieram ao de cima para um ajuste de contas. No domingo seguinte, já com o vinho a empurrar, houve mesmo facadas. O Corneta tinha com o Catrelha uma questão de águas de há séculos e aproveitou. Os partidos subdividiram-se assim em grupos pelo Catrelha e pelo Corneta. Foi quando o Bóia, que não gramava o Capador desde a história de um porco mal capado, adiantou na taberna que as galinhas possivelmente tinham sido trocadas por ele, que não gramava o meu tio desde a história de mordomia do Mártir S. Sebastião. O Carapanta ouviu e foi dizer. Num outro domingo, e já entusiasmado de briol, o Capador pediu satisfações. Armou-se então um arraial cujo balanço deu três feridos com facadas, dois à paulada e um morto com um tiro de caçadeira. E desde então toda a aldeia ficou em pé de guerra. Metade da população foi metida na cadeia, mas depois de muitos interrogatórios não de passou daquilo que já se sabia e era quem tinha ficado ferido e quem tinha ficado morto. De modo que se reconstituiu a população com a libertação dos presos. E dado isso, recomeçou-se outra vez. No domingo seguinte, melhorou-se o saldo com dois mortos e vinte feridos. Veio a guarda e levou a outra metade da população com um ou outro elemento da primeira metade.
(...)
(...)
Trocadas as metades e recomeçadas as investigações sem resultado, houve quem propusesse meter tudo na cadeia. Mas havia o problema dos velhos e das crianças que precisavam dos outros e talvez estivessem inocentes, e veio tudo outra vez para a rua. Mas agora, aos domingos, a aldeia ficava coalhada de guardas. A princípio deu resultado, porque nas discussões não se passou de palavras. Até que certa vez uma pedrada anónima acertou em cheio na cabeça de um agente e logo se armou uma sarrabulhada enorme, com gritos, gente, a fugir e tiroteio para o ar. E como a dada altura as pedradas recomeçaram, o tiroteio recomeçou também, mas mais baixo. O saldo dessa vez foi francamente positivo, com cinco mortos e vinte feridos. E como a luta continuou, alguns habitantes, que não podiam estar à espera de que acabasse, foram morrendo de morte natural. E como havia intervalos na luta com a autoridade, alguns habitantes aproveitavam para irem entre si acertando contas em atraso.»
A segunda narrativa, «Saturno», é mais intensa. A verdade é que não a entendi por completo, mas as palavras, o cenário e todo o diálogo que nos é relatado (também o tema, condenação à morte) são bastante chocantes e tocam-nos a alma.
Tenho ainda de sublinhar um outro conto, «O Morto», que foi o que mais me divertiu e que recomendo, porque é daquelas histórias que nos põem a rir sozinhos.
Devo confessar que não me foi fácil ler e entender este livro. A sua linguagem é muito erudita e aprendi várias palavras que desconhecia. Por outro lado, isto tornou a sua leitura mais interessante.
Por vezes foi cansativo lê-lo, principalmente em partes com muitas descrições e pormenores que, à primeira vista, eram insignificantes. Porém com alguma motivação isto foi ultrapassado.
Eu gostei deste livro porque exigiu mais do meu intelecto do que a maioria dos livros faz. Também porque são histórias muito versáteis, que tanto nos põem a rir como na página seguinte a chorar.
O que eu menos gostei foi o aborrecimento que se apoderava de mim em algumas partes do livro. Talvez seja eu que ainda não esteja preparada para uma leitura assim. A verdade é que nem sempre eu me conseguia concentrar completamente na leitura.
Em suma, foi um livro que eu gostei e que recomendo aos bons amantes da literatura e também àqueles que gostam de um bom sarcasmo, porque é um livro excelente. E agradeço a recomendação do professor de Português porque de facto me fez bem ler um livro destes.
Mariana Alves, (nº 13, 9º C)