Já antes aqui nos pronunciámos sobre O Toucador, «Periódico sem política dedicado às Senhoras portuguezas», onde Almeida Garrett teceu diversas críticas sobre arte e moda, onde colhemos por exemplo esta nótula sobre o teatro de Shakespeare:
Deixemos o teatro inglês, e os seus pregoeiros; contentemo-nos de admirar o imortal Shakespeare; mas não o louvemos, respeitemos o seu grande génio, mas não somos obrigados a amá-lo. Espantou-nos muitas vezes, mas nenhuma nos encantou. A falta de respeito, e de delicadeza, com que tratou o belo sexo, a rusticidade das expressões, com que o ele usou, o desacreditam aos olhos do leitor sensível, e possuído de seus deveres, que não pode reconhecer mérito em quem se esqueceu deles para que a porção mais bela da espécie, a cuja glória só queremos, e devemos trabalhar.
Ver agora sem vergonha
Ver o tal Inglês malcriado
Jogar chalaça de arrieiro
Sobre o trágico tablado!
Ouvir o ladrão dum preto
A bela infeliz amante
Dizer finezas d’ Alfama
Em linguagem de estudante!
Ver o herói, ardendo em zelos
Mais negros que a sua cara,
Afogar c’ um travesseiro
À inocente, a quem roubara!
Se isto em Inglês é beleza
De expressão, e de energia;
Entre nós, os portugueses
É nojenta porcaria.
Não pense algum rígido censor que nós julgamos de leve tão acreditado poeta: esta é uma das suas mais afamadas tragédias, o Otelo. (…)
Almeida Garrett, O Toucador (com actualização linguística do original da BNP)