
Postal de Alfredo Keil, alusivo a «Dona Branca» de Almeida Garrett, a partir de edição fac-similada da Lithografia Nacional do Porto.
(Colecção «Homenagem a Garrett» da Biblioteca Almeida Garrett)
Depois de uma pequena incursão, na semana passada, pela obra dramática, de cariz histórico, de Almeida Garrett (com «O Alfageme de Santarém»), continuamos a divulgar esse ideal nacionalista, na base de tantos dos seus escritos.
Propomos hoje a revisitação do seu «Dona Branca», poema de 1826, no qual, à maneira dos romances cavaleirescos medievais, se narra, entre outros, o amor de uma dama cristã (Dona Branca) e de um chefe mouro (de seu nome Aben-Afã). O poema integra já muitos dos aspectos que constituirão a base da escola romântica, de que justamente Almeida Garret foi, entre nós, precursor.
Reproduzimos aqui a versão digital, disponível na Biblioteca Nacional.
Canto III
Mas que falange é essa de guerreiros
Que vão, longo do mar, nos corcéis férvidos
Correndo à brida solta? — Um que se eleva
Sobre os outros — qual se ergue no deserto
A palmeira coroada sobre a grama
Que à raiz se lhe acoita, — e que montado
Num formoso andaluz da cor da noite
A comitiva precede;
Quem é ele? Quem é essa beldade,
Que de arção leva e que sustém nos braços?
Onde a conduz, e donde a traz roubada?
Roubada a traz! — Mas no formoso gosto
Da bela não se pinta o desespero
Cruel da dor: sua nívea frente ingénua
Poisa no seio do gentil guerreiro,
E seus olhos do puro azul da esfera
Volve de quando em quando aos olhos negros
Do que a leva no braços. Não aflito,
Não é convulso o olhar, mas triste e lânguido:
Porém, se o amor ou mágoa lho embrandece,
Quem poderá saber. — Suas longas vestes
Alvas de neve, sua touca airosa
Como de cristã virgem dedicada
Aos altares, parecem. — Mas na frente
Dos que a levam resplende a moura lua.
No enroscado turbante! Já do outeiro,
Onde o brilhante paço se divisa,
A costa sobem; à dourada grade
Se aproximam: abriu-se por si mesma,
Como encantada que é; e os leões fulvos
A juba sacudindo, franca estrada
Ao guerreiro gentil e à bela deixam;
Mas quando os outros ao Lumiar vedado
Ousam de se afoitar, — as portas fecham-se
Com terrível fragor, os leões rugem,
E o corcéis espantados, eriçando
De horror as crinas, voltam, e sem freio,
Sem governo, com fúria partem, voam,
E em polvorosa nuvem desaparecem.
Almeida Garrett, Dona Branca (1826)