segunda-feira, 22 de novembro de 2010

«Aqui gostamos de ler Almeida Garrett»




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Almeida Garrett foi, como se sabe, um escritor multifacetado, tendo-se dedicado ao mesmo tempo à poesia, ao romance, ao drama, à recolha de literatura popular, mas também à política. Entre as suas obras, encontramos algumas preciosidades, caso das Fábulas, livro que escreve, imitando Esopo, Fedro e La Fontaine, ou os poetas árcades e pré-românticos portugueses.

Escolhemos, para esta semana, a fábula do «Pelo Zurro o Burro», um “Conto Académico”, como lhe chama Garrett, repleto de erudição, mas também de sentido de humor! Boas leituras!

Era uma vez: diz mestre La Fontaine,
Que lho dissera Fedro seu amigo,
Que lho dissera um grego corcovado…
Pois tudo neste mundo vai por ditos,
Tudo se diz porque outros o disseram…
E talvez que não fosse La Fontaine,
Mas outro que tal, que vale o mesmo:
Um dia… mas o fio à minha história
Não o torno a quebrar por coisa alguma;
Poema que tem muitos episódios
Nunca pode ser bom, nem bons ser eles:
Diz o pai Horácio ou outro tal como ele
Destes que intentam acanhar o génio
Com lei servis por eles arranjadas
Que segundo a moderna guapa escola,
As não podem sofrer de tais barbantes.
Um dia, pois, o pai dos homens e numes,
(…)
Asno felpudo de orelhões caídos
Quis transformar em férvido ginete
E ao bom Mercúrio, seu fiel ministro
Manda que o longo pêlo lhe tosquie
E um bom naco cerceie das orelhas.
Era grande o burrico, nédio e gordo,
E por milagre do supremo Júpiter,
Que sempre faz como este bons milagres,
Ei-lo desempenado e mui lampeiro,
Qual andaluz corcel ou égua arábia,
A par doutros corcéis se vai trotando.
O povo cavalar na forma nova
Não reconhece a burrical maranha.
Como eles folgazão retouça e pula,
Ladeia, faz corcovos, trava o passo,
Enfim parece — tanto podem numes
E tal é o poder de um bom milagre! —
Cavalo mestre e feito em picaria.
— Qual rústico peão de bronca aldeia
De tamancos nos pés, no saco a broa,
Que vem embarcar lá da província,
E para um tio, que é senhor de engenho,
Ricaço em escravos, em arroz, melaço,
Engodado aprendiz vai ser caixeiro:
Morre-lhe o tio, eis o rapaz num sino,
Vende escravos e escravas e melaço,
E vem, Creso de cocos e patacas,
Meter toda Lisboa num chinelo;
Já por boas, luzentes amarelas
Serôdio compra fidalguesco foro… (…)
E é já barão quando põe em terra.
Ei-lo que alteia os ombros encolhidos
Entufa em vento as bochechudas belfas,
Empina a pança, engrossa a voz pausada,
E no tropel dos nobres envolvido,
Se o não conheces, crera-a provindo
Dos que nos velhos pergaminhos vivem.
Tal já desorelhado e ufano o burro
Entre altivos ginetes campeava.
Mas, oh fado infeliz, mesquinha sorte!
Quando entre os novos ledos companheiros
Se vai trotando com pimpão meneio,
Ei-lo [que se] depara com vilã jumenta
De hirsuta felpa e de costado esguio,
Que os fios corta a alma de quem a via (…).
Súbito esquece o recém-nobre estado,
Lembram-lhe antigos, burricais requebros
E o tom galanteador de asino namoro:
Estira amante o beijador focinho,
E em notas de invejar por um Lablache,
Salmodia airoso, compassado orneio,
Deixa os amigos e a zurrar se fica!

Almeida Garrett, Fábulas in Obras Completas (1853)
(Com actualização do Português a partir do original, disponível na
Biblioteca Nacional Digital)