quarta-feira, 10 de novembro de 2010

«Aqui gostamos de ler Almeida Garrett»






Romance de «Dom Beltrão»

— Quedos, quedos, cavaleiros,
Que el-rei os manda contar!
Contaram e recontaram,
Só um lhe vinha a faltar:

Era esse Dom Beltrão,
Tão forte no batalhar;
Nunca o acharam de menos
Senão naquele contar,
Senão ao passar do rio,
Nos portos do mal passar.

Deitam sortes à ventura
A qual o devia ir buscar:
Que ao partir fizeram todos
Preito, homenagem no altar,
O que na guerra morresse
Dentro em França se enterrar.

Sete vezes deitam sortes
A quem no há-de ir buscar;
Todas sete lhe caíram
Ao bom velho de seu pai.
Volta rédeas ao cavalo,
Sem mais dizer nem falar...

Que lha sorte não caíra,
Nunca ele havia de ficar.
Triste e só se foi andando,
Não cessava de chorar;

De dia vai pelos montes,
De noite vai pelo vale;
Aos pastores perguntando
Se viram ali passar
Cavaleiro de armas brancas,
Seu cavalo tremedal.

— Cavaleiro de armas brancas,
Se cavalo tremedal,
Por esta ribeira fora
Ninguém não no viu passar.

Vai andando, vai andando,
Sem nunca desanimar,
Chega àquela mortandade
Donde fora Ronceval:

Os braços já tem cansados
De tanto morto virar;
Viu a todos os franceses,
Dom Beltrão não pode achar.

Volta atrás o velho triste,
Voltou por um areal,
Viu estar um perro moiro
Em um adarve a velar:

— Por Deus te rogo, bom moiro,
Me digas sem me enganar,
Cavaleiro de armas brancas
Se o viste por aqui passar.
Ontem à noite seria,
Horas de o galo cantar.
Se entre vós está cativo,
A oiro o hei-de pesar.

— Esse cavaleiro, amigo,
Diz-me tu que sinais traz.

— Brancas são as suas armas,
O cavalo tremedal.
Na ponta de sua lança
Levava um branco cendal,
Que lhe bordou sua dama
Bordado a ponto real.

— Esse cavaleiro, amigo,
Morto está nesse pragal,
Com as pernas dentro d’água,
O corpo no areal.
Sete feridas no peito
A qual será mais mortal;
Por uma lhe entra o sol,
Por outra lhe entra o luar,
Pela mais pequena delas
Um gavião a voar.

— Não torno culpa a meu filho,
Nem aos moiros de o matar;
Torno a culpa ao seu cavalo
De o não saber retirar.

Milagre! Quem tal diria,
Quem tal pudera contar!
O cavalo meio morto
Ali se pôs a falar:

— Não me tornes essa culpa,
Que ma não podes tornar:
Três vezes o retirei,
Três vezes para p salvar;
Três me deu de espora e rédea
Co’a sanha de pelejar,
Três vezes me apertou cilhas,
Me alargou o peitoral...
À terceira fui a terra
Desta ferida mortal.

Almeida Garrett (recolha), Romanceiro (1843)