segunda-feira, 25 de outubro de 2010

«Escritores da República»





Caricatura de Guilherme de Azevedo por Rafael Bordalo Pinheiro (aqui)


Alma Nova

A Antero de Quental
Meu amigo,

Este livro parece-me um pouco do nosso tempo. Sorrindo ou combatendo, fala da Humanidade e da Justiça. inspirando-se no mundo que nos rodeia.
E porque julgo que ele segue na direcção nova dos espíritos, ofereço-o a um obreiro honesto do pensamento: a uma alma lúcida, moderna e generosa.

Dezembro de 1873.

I

Eu poucas vezes canto os casos melancólicos,
os letargos gentis, os êxtases bucólicos
e as desditas cruéis do próprio coração;
mas não celebro o vício e odeio o desalinho
da musa sem pudor que mostra no caminho
a liga à multidão.

A sagrada poesia, a peregrina eterna,
ouvi dizer que sofre uma afecção moderna,
uns fastios sem nome, uns tédios ideais;
que ensaia, presumida, o gesto romanesco
e, vaidosa de si, no cola ebúrneo e fresco,
Põe cremes triviais!

Oh, pensam mal de ti, da tua castidade!
Deslumbra-os o fulgor dos astros da cidade,
os falsos ouropéis das cortesãs gentis,
e julgam já tocar-te as roçagantes vestes
ó deusa virginal das cóleras celestes,
das graças juvenis!

Retine a cançoneta alegre das bacantes,
saudadas nos vagões, nos cais, nos restaurantes,
visões d' olhar travesso e provocantes pés,
e julgam já escutar a voz do paraíso,
amando o que há de falso e torpe no sorriso
das musas dos cafés!

Oh, tu não és, decerto, a virgem quebradiça
estiolada e gentil, que vem depois da missa
mostrar pela cidade o seu fino desdém,
nem a fada que sente um vaporoso tédio
enquanto vai sonhando um noivo rico e nédio
Que a possa pagar bem!

Nem posso mesmo crer, arcanjo, que tu sejas
a menina gentil que às portas das igrejas
enquanto a multidão galante adora a cruz,
a bem do pobre enfermo à turba pede esmola
nas pampas ideais da moda, que a consola
das mágoas de Jesus!
E nas horas de luta enquanto os povos choram
e a guerra tudo mata e os reis tudo devoram,
não posso dizer bem se acaso tu serás
a senhora que espalha os lânguidos fastios
nos pomposos salões, sorrindo a fazer fios
à viva luz do gás!

Tu és a aparição gentil, meia selvagem,
de olhar profundo e bom, de cândida roupagem,
de fronte imaculada e seios virginais,
que desenha no espaço o límpido contorno
e cinge na cabeça o virginal adorno
de folhas naturais.

Teus a linha ideal das cândidas figuras;
as curvas divinais; as tintas sãs e puras
da austera virgindade; as belas correcções;
e segues majestosa em teu longo caminho
deixando flutuar a túnica de linho
às frescas virações!

Quando trava batalha a tua irmã Justiça
acodes ao combate e apontas sobre a liça
uma espada de luz ao Mal dominador:
e pensas na beleza harmónica das cousas
sentindo que se move um mundo sob as lousas
no gérmen duma flor!

Num sorriso cruel, pungente d' ironia,
também sabes vibrar, serena, altiva e fria,
o látego febril das grandes punições;
e vendo-te sorrir, a geração doente,
sentir cuida, talvez, a nota decadente,
das mórbidas canções!

Oh, voa sem cessar traçando nos teus ombros
o manto constelado, ó deusa dos assombros,
até chegar um dia às regiões de luz,
aonde, na poeira aurífera dos astros,
contrito, Satanás enxugará de rastos,
as chagas de Jesus!

Lugar à minha fada ó lânguidas senhoras!
E vós que amais do circo as noites tentadoras,
os flutuantes véus, os gestos divinais,
podeis vê-la passar num turbilhão fantástico,
voando no corcel febril, nervoso, elástico,
dos novos ideais!

Guilherme d' Azevedo, Alma Nova (1874)