quarta-feira, 29 de setembro de 2010

«Escritores da República»





Continuaremos nos próximos tempos a dar a conhecer aos nossos leitores e visitantes alguns dos escritores e textos mais emblemáticos da campanha republicana e/ ou antimonárquica.

Nesta rubrica, ganha relevo o trabalho de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, escritores que a partir de Maio de 1871 assinam todos os meses uma crónica social, de grande alcance crítico e que na época provocou uma pequena revolução no nosso meio intelectual. Trata-se de As Farpas.

Os dois autores passam em revista a sociedade portuguesa, denunciando com humor e inteligência os seus “podres” e fragilidades. Nem o rei (à data, D. Luís) escapa às pinceladas irónicas de Eça e Ramalho. Lendo As Farpas, fica-se com a impressão de que Portugal é um país velho e arruinado, incapaz de competir economicamente com as outras nações e cheio de vícios. Os pobres e desfavorecidos são muitas vezes o alvo da atenção dos dois autores. Deixamos um exemplo:

“O parlamento é uma casa mal alumiada. Por isso o parlamento é uma casa mal alumiada, onde se vai, à uma hora, conversar, escrever cartas particulares, maldizer um pouco, e combinar partidas de whist. O Parlamento é uma sucursal do Grémio. A tribuna é uma prateleira de copos de água intactos.

O ministério, o poder executivo, deixou de ser um poder do Estado. E apenas uma necessidade do programa constitucional. Está no cartaz, é necessário que apareça na cena. Não governa, não tem ideia, não tem sistema; nada reforma, nada estabelece; está ali, é o que basta. O País verifica todos os dias que alguns correios andam atrás de algumas carruagens - e fica contente.

— Lá vai um ministro! - diz-se na rua.

— Ah! vai? - exclama a burguesia. - Bem, existe a ordem!

E assim se passa, defronte de um público enojado e indiferente, esta grande farsa que se chama a intriga constitucional. Os lustres estão acesos. Mas o espectador, o País nada tem de comum com o que se representa no palco; não se interessa pelos personagens e a todos acha impuros e nulos; não se interessa pelas cenas e a todas acha inúteis e imorais. Só às vezes, no meio do seu tédio, se lembra que para poder ver, teve que pagar no bilheteiro!

Pagou - já dissemos que é a única coisa que faz além de rezar. Paga e reza. Paga para ter ministros que não governam, deputados que não legislam, soldados que o não defendem, padres que rezam contra ele. Paga àqueles que o espoliam, e àqueles que são seus parasitas. Paga os que o assassinam, e paga os que o atraiçoam. Paga os seus reis e os seus carcereiros. Paga tudo, paga para tudo.

E em recompensa, dão-lhe uma farsa.

No entanto, cuidado! Aquele pano de fundo não está imóvel: agita-se como impelido por uma respiração invisível. Alguém decerto está do outro lado. Enquanto a farsa se desenrola na cena, alguém, por trás do fundo, espera, agita-se, prepara-se, arma-se talvez.

— Quem é esse alguém? As vossas consciências que vos respondam. O que apenas podemos dizer é que não é o sr. bispo de Viseu.

E não obstante, como tudo parece feliz e repousado! Os jornais conversam baixinho e devagar uns com os outros. O parlamento ressona. O ministério, todo encolhido, diz aos partidos -chuta! As secretarias cruzam os braços. O tribunal de contas, lá no seu cantinho, para se entreter, maneja sorrindo as quatro espécies. A polícia, torcendo os bigodes, galanteia as cozinheiras. O conselho de Estado rói as unhas. O exército toca guitarra. A câmara municipal mata em sossego os cães vadios.

As árvores do Rossio enchem-se de folhas. Os fundos descem, e descem há tanto tempo que devem estar no centro da Terra. O povo, coitado, lá vai morrendo de fome como pode. Nós fazemos os nossos livrinhos. Deus faz a sua Primavera... Viva a Carta!

Decerto, como tudo é congénere! Vejam a imprensa. A imprensa é composta de duas ordens de periódicos: os noticiosos e os políticos.
(…)

Portugal, não tendo princípios, ou não tendo fé nos seus princípios, não pode propriamente ter costumes.

Fomos outrora o povo do caldo da portaria, das procissões, da navalha e da taberna. Compreendeu-se que esta situação era um aviltamento da dignidade humana: e fizemos muitas revoluções para sair dela. Ficámos exactamente em condições idênticas. O caldo da portaria não acabou. Não é já como outrora uma multidão pitoresca de mendigos, beatos, ciganos, ladrões, caceteiros, que o vai buscar alegremente, ao meio-dia, cantando o Bendito; é uma classe inteira que vive dele, de chapéu alto e paletó.

Este caldo é o Estado. Toda a Nação vive do Estado. Logo desde os primeiros exames no liceu, a mocidade vê nele o seu repouso e a garantia do seu futuro. A classe eclesiástica já não é recrutada pelo impulso de uma crença; é uma multidão desocupada que quer viver à custa do Estado. A vida militar não é uma carreira; é uma ociosidade organizada por conta do Estado. Os proprietários procuram viver à custa do Estado, vindo ser deputados a 2$500 réis por dia. A própria indústria faz-se proteccionar pelo Estado e trabalha sobretudo em vista do Estado. A imprensa até certo ponto vive também do Estado. A ciência depende do Estado. O Estado é a esperança das famílias pobres e das casas arruinadas. Ora como o Estado, pobre, paga pobremente, e ninguém se pode libertar da sua tutela para ir para a indústria ou para o comércio, esta situação perpetua-se de pais a filhos corno uma fatalidade.

Resulta uma pobreza geral. Com o seu ordenado ninguém pode acumular, poucos se podem equilibrar. Daí o recurso perpétuo para a agiotagem; e a dívida, a letra protestada, como elementos regulares da vida. Por outro lado o comércio sofre desta pobreza da burocracia, e fica ele mesmo na alternativa de recorrer também ao Estado ou de cair no proletariado. A agricultura, sem recursos, sem progresso, não sabendo fazer valer a terra, arqueja à beira da pobreza e termina sempre recorrendo ao Estado.

Tudo é pobre: a preocupação de todos é o pão de cada dia.

In As Farpas (edição Principia, coordenada por Maria Filomena Mónica)