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Continuaremos nos próximos tempos a dar a conhecer aos nossos leitores e visitantes alguns dos escritores e textos mais emblemáticos da campanha republicana e/ ou antimonárquica.
Nesta rubrica, ganha relevo o trabalho de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, escritores que a partir de Maio de 1871 assinam todos os meses uma crónica social, de grande alcance crítico e que na época provocou uma pequena revolução no nosso meio intelectual. Trata-se de As Farpas.
Os dois autores passam em revista a sociedade portuguesa, denunciando com humor e inteligência os seus “podres” e fragilidades. Nem o rei (à data, D. Luís) escapa às pinceladas irónicas de Eça e Ramalho. Lendo As Farpas, fica-se com a impressão de que Portugal é um país velho e arruinado, incapaz de competir economicamente com as outras nações e cheio de vícios. Os pobres e desfavorecidos são muitas vezes o alvo da atenção dos dois autores. Deixamos um exemplo:
“O parlamento é uma casa mal alumiada. Por isso o parlamento é uma casa mal alumiada, onde se vai, à uma hora, conversar, escrever cartas particulares, maldizer um pouco, e combinar partidas de whist. O Parlamento é uma sucursal do Grémio. A tribuna é uma prateleira de copos de água intactos.
Nesta rubrica, ganha relevo o trabalho de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, escritores que a partir de Maio de 1871 assinam todos os meses uma crónica social, de grande alcance crítico e que na época provocou uma pequena revolução no nosso meio intelectual. Trata-se de As Farpas.
Os dois autores passam em revista a sociedade portuguesa, denunciando com humor e inteligência os seus “podres” e fragilidades. Nem o rei (à data, D. Luís) escapa às pinceladas irónicas de Eça e Ramalho. Lendo As Farpas, fica-se com a impressão de que Portugal é um país velho e arruinado, incapaz de competir economicamente com as outras nações e cheio de vícios. Os pobres e desfavorecidos são muitas vezes o alvo da atenção dos dois autores. Deixamos um exemplo:
“O parlamento é uma casa mal alumiada. Por isso o parlamento é uma casa mal alumiada, onde se vai, à uma hora, conversar, escrever cartas particulares, maldizer um pouco, e combinar partidas de whist. O Parlamento é uma sucursal do Grémio. A tribuna é uma prateleira de copos de água intactos.
O ministério, o poder executivo, deixou de ser um poder do Estado. E apenas uma necessidade do programa constitucional. Está no cartaz, é necessário que apareça na cena. Não governa, não tem ideia, não tem sistema; nada reforma, nada estabelece; está ali, é o que basta. O País verifica todos os dias que alguns correios andam atrás de algumas carruagens - e fica contente.
— Lá vai um ministro! - diz-se na rua.
— Ah! vai? - exclama a burguesia. - Bem, existe a ordem!
E assim se passa, defronte de um público enojado e indiferente, esta grande farsa que se chama a intriga constitucional. Os lustres estão acesos. Mas o espectador, o País nada tem de comum com o que se representa no palco; não se interessa pelos personagens e a todos acha impuros e nulos; não se interessa pelas cenas e a todas acha inúteis e imorais. Só às vezes, no meio do seu tédio, se lembra que para poder ver, teve que pagar no bilheteiro!
Pagou - já dissemos que é a única coisa que faz além de rezar. Paga e reza. Paga para ter ministros que não governam, deputados que não legislam, soldados que o não defendem, padres que rezam contra ele. Paga àqueles que o espoliam, e àqueles que são seus parasitas. Paga os que o assassinam, e paga os que o atraiçoam. Paga os seus reis e os seus carcereiros. Paga tudo, paga para tudo.
E em recompensa, dão-lhe uma farsa.
No entanto, cuidado! Aquele pano de fundo não está imóvel: agita-se como impelido por uma respiração invisível. Alguém decerto está do outro lado. Enquanto a farsa se desenrola na cena, alguém, por trás do fundo, espera, agita-se, prepara-se, arma-se talvez.
— Quem é esse alguém? As vossas consciências que vos respondam. O que apenas podemos dizer é que não é o sr. bispo de Viseu.
E não obstante, como tudo parece feliz e repousado! Os jornais conversam baixinho e devagar uns com os outros. O parlamento ressona. O ministério, todo encolhido, diz aos partidos -chuta! As secretarias cruzam os braços. O tribunal de contas, lá no seu cantinho, para se entreter, maneja sorrindo as quatro espécies. A polícia, torcendo os bigodes, galanteia as cozinheiras. O conselho de Estado rói as unhas. O exército toca guitarra. A câmara municipal mata em sossego os cães vadios.
As árvores do Rossio enchem-se de folhas. Os fundos descem, e descem há tanto tempo que devem estar no centro da Terra. O povo, coitado, lá vai morrendo de fome como pode. Nós fazemos os nossos livrinhos. Deus faz a sua Primavera... Viva a Carta!
Decerto, como tudo é congénere! Vejam a imprensa. A imprensa é composta de duas ordens de periódicos: os noticiosos e os políticos.
(…)
Portugal, não tendo princípios, ou não tendo fé nos seus princípios, não pode propriamente ter costumes.
Portugal, não tendo princípios, ou não tendo fé nos seus princípios, não pode propriamente ter costumes.
Fomos outrora o povo do caldo da portaria, das procissões, da navalha e da taberna. Compreendeu-se que esta situação era um aviltamento da dignidade humana: e fizemos muitas revoluções para sair dela. Ficámos exactamente em condições idênticas. O caldo da portaria não acabou. Não é já como outrora uma multidão pitoresca de mendigos, beatos, ciganos, ladrões, caceteiros, que o vai buscar alegremente, ao meio-dia, cantando o Bendito; é uma classe inteira que vive dele, de chapéu alto e paletó.
Este caldo é o Estado. Toda a Nação vive do Estado. Logo desde os primeiros exames no liceu, a mocidade vê nele o seu repouso e a garantia do seu futuro. A classe eclesiástica já não é recrutada pelo impulso de uma crença; é uma multidão desocupada que quer viver à custa do Estado. A vida militar não é uma carreira; é uma ociosidade organizada por conta do Estado. Os proprietários procuram viver à custa do Estado, vindo ser deputados a 2$500 réis por dia. A própria indústria faz-se proteccionar pelo Estado e trabalha sobretudo em vista do Estado. A imprensa até certo ponto vive também do Estado. A ciência depende do Estado. O Estado é a esperança das famílias pobres e das casas arruinadas. Ora como o Estado, pobre, paga pobremente, e ninguém se pode libertar da sua tutela para ir para a indústria ou para o comércio, esta situação perpetua-se de pais a filhos corno uma fatalidade.
Resulta uma pobreza geral. Com o seu ordenado ninguém pode acumular, poucos se podem equilibrar. Daí o recurso perpétuo para a agiotagem; e a dívida, a letra protestada, como elementos regulares da vida. Por outro lado o comércio sofre desta pobreza da burocracia, e fica ele mesmo na alternativa de recorrer também ao Estado ou de cair no proletariado. A agricultura, sem recursos, sem progresso, não sabendo fazer valer a terra, arqueja à beira da pobreza e termina sempre recorrendo ao Estado.
Tudo é pobre: a preocupação de todos é o pão de cada dia.”
In As Farpas (edição Principia, coordenada por Maria Filomena Mónica)
In As Farpas (edição Principia, coordenada por Maria Filomena Mónica)