Almeida Garrett foi o introdutor no nosso país do Romantismo, mas nunca deixou de apresentar marcas classicistas, vindas sobretudo da sua cultura escolar e académica. Entre os vestígios da formação clássica, conta-se o apego à mitologia clássica, expresso em inúmeras referências a deuses greco-latinos, tanto na sua poesia, como nos romances e no teatro.
Assim sucede com Mérope, tragédia representada pela primeira vez em 1821, ou seja, no início da sua vida literária, mas que viria apenas a ser publicada vinte anos mais tarde, fruto de sucessivas rescritas. Mérope, recorde-se, é uma das heroínas gregas que inspiraram já os antigos tragediógrafos (Eurípides, em especial) e que continuaram na tradição europeia (com Voltaire à cabeça).
A lenda, que Garrett recupera, diz-nos que Mérope (filha do rei Cípselo) foi dada em casamento ao rei da Messénia (de nome Cresfontes), o qual acabará por ser assassinado numa rebelião contra si levantada por Polifontes. O mesmo procurou eliminar os descendentes de Cresfontes, matando os dois filhos mais velhos. Mérope, que entretanto se vê forçada a casar com Polifontes, tudo faz para salvar o filho mais novo, ocultando-o sob pseudónimos.
Na sua tragédia, Almeida Garrett faz contracenar as personagens de Mérope, Polifonte, Egisto, Polidoro, do Sumo Sacerdote e do Povo, imitando a tragédia clássica em cinco actos. Nela, Egisto (símbolo da luta e da resistência) é condenado à morte pelo tirano Polifonte, ante as súplicas da chorosa Mérope. Deixamos um excerto:
Mérope — Malvado! Ele é meu filho! (suspensão geral)
Polifonte — Teu filho! É vão fingir! Já não te creio. Morrerá e…
Egisto — Seu filho eu sou, tirano: no furor que me anima o reconheço. Solta-me os ferros e verás…
Polifonte — Insano, que ousaste proferir! Não vês, não temes que…
Egisto — Desprezo-te! Não temo.
Mérope — Oh, tem piedade. Desculpa-lhe, senhor!
Egisto — Não me desculpes: eu não quero a piedade de um tirano…
Polifonte — Não a terás. Feri.
Mérope (abraçando-se com Egisto) — Primeiro os ferros haveis de atravessar por este peito. O coração da mãe rasgai primeiro para chegar ao coração do filho. Bárbaros, que vos fez este inocente? E tu, cruel, que não fartaste ainda de nosso sangue a insaciável sede, satisfaz-te em mim, em mim que te vinga. Mas vingar-te de quê? Senhor, perdoa…Vês a teus pés prostrada uma rainha; minhas lágrimas suplicantes atende, escuta estes soluços lastimados, ouve os meus rogos; movam-te a piedade as desventuras de uma mísera mãe; oh, leva tudo o mais, deixa-me o filho, deixa-me o filho, deixa-mo (…)
Almeida Garrett, Mérope (1941)