quarta-feira, 6 de outubro de 2010

«Escritores da República»




Foto: João Pinheiro Chagas

Sobre a “Censura”

De todos os vexames a que a liberdade de pensar ainda está exposta, o mais vexatório é a Censura, porque as leis, os tribunais e as penas são ainda a responsabilidade, enquanto que a Censura é a tutela.

No decurso da minha carreira de jornalista fui muitas vezes submetido a essa tutela, e posso depor em como foram esses os piores quartos de hora da minha vida. Os julgamentos de imprensa e outras incómodas consequências dos meus actos de escritor, nunca feriram o meu orgulho.

A Censura humilhou-me. Nenhum acto de opressão dos poderes é mais vexatório, porque nenhum nos despoja mais directamente da liberdade. A Censura em rigor, não é um acto de opressão. – É a mão no pescoço. Devemos muitas vezes afrontar leis despóticas e juízes parciais. Muitas vezes espera-nos a prisão. Pois bem! Isto não nos desapossa do sentimento da liberdade, porque no momento em que lançamos mão da pena, nada nos detém a mão, nem mesmo o temor da responsabilidade, que só é uma coacção eficaz para as naturezas pusilânimes e essas não manejam uma pena, como não manejam uma espada. Ao contrário, quase sempre se vai ao encontro das responsabilidades que comprometem a dignidade da inteligência e o sentimento do dever. Essas responsabilidades enobrecem-nos e tornam-nos mais corajosos.

Entretanto, somos livres, porque responsabilidade quer dizer liberdade. Sob o peso da Censura temos o sentimento quase físico da coacção. Lançamos mão da pena, se somos forçados a fazê-lo, e a nossa pena não se move, como se alguém, ou alguma coisa, nos retivesse a mão. A Censura vai exercer-se mais tarde, mas exerce-se muito antes, e é isso que profundamente nos humilha, porque actua sobre nós, por efeito da sua coacção moral, antes de materialmente actuar sobre a nossa obra.
O acto material da Censura é o que nos molesta menos. Em que é que pode molestar-nos que um indivíduo, geralmente iletrado, se entretenha a ler os nossos escritos com um olho faccioso?

O que nos vexa até ao ponto de nos parecer que tudo se degradou em nós, é que essa censura que um outro vai exercer, começamos nós por a exercer sobre nós próprios – e não há despotismo mais aviltante do que o que nos entra no sangue.

Já as leis de imprensa não são compatíveis com os regimes livres. As leis de imprensa visam a punir os delitos do pensamento e não há delitos do pensamento, visto que nunca foi um delito exprimir opiniões, sejam de que natureza for. Tudo o que na imprensa não é da jurisdição da imprensa é da jurisdição do direito comum. Uma lei de imprensa, mesmo livre, é um atentado à liberdade, porque põe limites no direito ilimitado de pensar. Mas o pensamento assusta ainda o homem, como nos tempos nebulosos em que se lhe revelava sob a forma do Diabo, e é forçoso que nos inclinemos perante as leis de imprensa que, uma ou outra vez, nos levam ao banco dos réus, sob o pretexto de que formulamos uma opinião.

Perante a Censura, que não é jurisprudência mais ou menos arqueológica, mas francamente despotismo sem máscara, não há meio de nos inclinarmos, a não ser que tenhamos uma alma de escravo.

Só aplicam a Censura – eu sei! – os déspotas em vias de falência e os regimes em vias de dissolução, mas estas razões não nos consolam do vilipêndio.

João Pinheiro Chagas, As Minhas Razões, (1906)