
A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel…
George Steiner, A Ideia de Europa, Gradiva
George Steiner, A Ideia de Europa, Gradiva
O que nos caracteriza como europeus, nos diferencia e nos permite assumir uma identidade própria, construída sobre dezenas de línguas e geografias tão distintas?
George Steiner na já célebre Palestra no Nexus Institute, convertida em livro, aborda com desassombrada eloquência o “ser europeu”, demonstrando-o em cinco parâmetros ou traços distintivos: os cafés, a dimensão humana do espaço físico, as ruas baptizadas com nomes próprios, a herança partilhada de Atenas e Jerusalém, a consciência escatalógica do europeu.
Mais do que apontar aspectos, Steiner apresenta a sua leitura histórica do Velho Continente, em torno do Humanismo, das Artes e das Ciências, ao mesmo tempo que nos persuade da terrível “contaminação” americana nos múltiplos aspectos da praxis social: “… Nada ameaça a Europa mais radicalmente […] do que a onde detersiva e exponencial do anglo-saxónico, e dos valores e imagem mundial uniformes […] que traz consigo. O computador, a cultura do populismo e o mercado de massas fala anglo-americano desde as discotecas de Portugal ao império da comida rápida de Vladivostok. A Europa morrerá efectivamente, se não lutar pelas suas línguas, tradições locais e autonomias sociais…”.
Fundamentalmente, o europeu é aquele que sob o signo da tradição, de Deus, do respeito pelos artistas e homens cultos, de veneração pelos seus santos e catedrais, se propõe “negociar” (é esse o termo de Steiner) moral, intelectual e também existencialmente os ideais da praxis e os horizontes do espírito, equilibrando-se entre eles.
I — Os cafés: “O café é um local de entrevistas e conspirações, de debates intelectuais e mexericos, para o flâneur e o poeta ou metafísico debruçado sobre o bloco de apontamentos. Aberto a todos, é todavia um clube, uma franco-maçonaria de reconhecimento político ou artístico-literário e presença programática. Uma chávena de café, um copo de vinho, um chá com rum assegura um local onde trabalhar, sonhar, jogar xadrez ou simplesmente permanecer aquecido todo o dia.”; “Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da «ideia de Europa»”.
II — A dimensão humana do espaço: “A cartografia da Europa é determinada pela capacidade, pelos horizontes percepcionados pelos pés humanos.”; “Os nossos acres, encontrem-se eles cobertos de neve, ou no zénite amarelo do Verão, são aqueles vividos por Bruegel, Monet ou van Gogh. Os bosques sombrios têm ninfas ou fadas, ocres literatos ou eremitas pitorescos.”
III — Nomes das ruas: “As ruas em torno da Sorbonne têm nomes de grandes mestres da escolástica medieval. […] O menino da escola e os homens e mulheres urbanos da Europa habitam verdadeiras câmaras de ressonância de feitos históricos, intelectuais, artísticos e científicos. […] Observe-se a diferença quase dramática. Nos Estados Unidos, tais memoranda são escassos. As ruas são interminavelmente nomeadas como «Pine», «Maple, «Oak» ou «Willow». As grandes avenidas chamam-se «Sunset», a mais nobre das ruas de Boston é conhecida como «Beacon»”.
IV — A herança de Jerusalém e Atenas: “Ser europeu é tentar negociar, moralmente e existencialmente, os ideais, afirmações, praxis rivais da cidade de Sócrates e da cidade de Isaías.”; “A nossa matemática tem sido «grega» […]. O vocabulário das nossas teorias e o dos nossos conflitos políticos e sociais, do nosso atletismo e da nossa arquitectura, dos nossos modelos estéticos e das nossas ciências naturais permanece saturada de raízes gregas…”; “O desafio monoteísta, a definição da nossa humanidade enquanto diálogo com o transcendente, o conceito de um Livro Supremo, a nossa do direito como algo inextrincável em relação aos mandamentos morais […] têm origem na singularidade enigmática e na dispersão de Israel.”
V — Consciência própria (a expectativa do apocalipse): “O meu quinto critério é uma consciência própria escatológica que, segundo creio, pode ser exclusiva da consciência europeia.”; “A Cristandade nunca abandonou completamente essa expectativa de um fim para o nosso mundo …”; “Duas guerras mundiais, que, na verdade, foram duas guerras civis europeias, conduziram esta intimação ao ponto de ebulição…”.
Através desta espécie de guião, Steiner aviva a europaicidade que nos é comum, tocando em questões sensíveis como as diferenças étnicas ou os complexos linguísticos na sua riqueza e conflitualidade. Importam sobremaneira os avisos que deixa e a convicção esperançada de que a Europa resistirá, apesar de tudo, sendo que “apesar de tudo” implica por exemplo a vaga agnóstica (em substituição do cristianismo) ou a fuga de cérebros (científicos e intelectuais) para os Estados Unidos.
Aliás, este é o derradeiro tocado, no qual o autor deixa este sublinhado: “É desesperadamente urgente fazermos cessar, na medida do possível, a saída dos nossos melhores jovens talentos científicos (mas também humanísticos) da Europa devido às ofertas edénicas dos Estados Unidos.”
Com prefácio de Durão Barroso e Rob Riemen, A Ideia de Europa afigura-se uma leitura incontornável, leve e penetrante, tanto mais que pelo actual contexto europeu, pautado por um profundo eurocepticismo.
Texto do Prof. João Ricardo Lopes
George Steiner na já célebre Palestra no Nexus Institute, convertida em livro, aborda com desassombrada eloquência o “ser europeu”, demonstrando-o em cinco parâmetros ou traços distintivos: os cafés, a dimensão humana do espaço físico, as ruas baptizadas com nomes próprios, a herança partilhada de Atenas e Jerusalém, a consciência escatalógica do europeu.
Mais do que apontar aspectos, Steiner apresenta a sua leitura histórica do Velho Continente, em torno do Humanismo, das Artes e das Ciências, ao mesmo tempo que nos persuade da terrível “contaminação” americana nos múltiplos aspectos da praxis social: “… Nada ameaça a Europa mais radicalmente […] do que a onde detersiva e exponencial do anglo-saxónico, e dos valores e imagem mundial uniformes […] que traz consigo. O computador, a cultura do populismo e o mercado de massas fala anglo-americano desde as discotecas de Portugal ao império da comida rápida de Vladivostok. A Europa morrerá efectivamente, se não lutar pelas suas línguas, tradições locais e autonomias sociais…”.
Fundamentalmente, o europeu é aquele que sob o signo da tradição, de Deus, do respeito pelos artistas e homens cultos, de veneração pelos seus santos e catedrais, se propõe “negociar” (é esse o termo de Steiner) moral, intelectual e também existencialmente os ideais da praxis e os horizontes do espírito, equilibrando-se entre eles.
I — Os cafés: “O café é um local de entrevistas e conspirações, de debates intelectuais e mexericos, para o flâneur e o poeta ou metafísico debruçado sobre o bloco de apontamentos. Aberto a todos, é todavia um clube, uma franco-maçonaria de reconhecimento político ou artístico-literário e presença programática. Uma chávena de café, um copo de vinho, um chá com rum assegura um local onde trabalhar, sonhar, jogar xadrez ou simplesmente permanecer aquecido todo o dia.”; “Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da «ideia de Europa»”.
II — A dimensão humana do espaço: “A cartografia da Europa é determinada pela capacidade, pelos horizontes percepcionados pelos pés humanos.”; “Os nossos acres, encontrem-se eles cobertos de neve, ou no zénite amarelo do Verão, são aqueles vividos por Bruegel, Monet ou van Gogh. Os bosques sombrios têm ninfas ou fadas, ocres literatos ou eremitas pitorescos.”
III — Nomes das ruas: “As ruas em torno da Sorbonne têm nomes de grandes mestres da escolástica medieval. […] O menino da escola e os homens e mulheres urbanos da Europa habitam verdadeiras câmaras de ressonância de feitos históricos, intelectuais, artísticos e científicos. […] Observe-se a diferença quase dramática. Nos Estados Unidos, tais memoranda são escassos. As ruas são interminavelmente nomeadas como «Pine», «Maple, «Oak» ou «Willow». As grandes avenidas chamam-se «Sunset», a mais nobre das ruas de Boston é conhecida como «Beacon»”.
IV — A herança de Jerusalém e Atenas: “Ser europeu é tentar negociar, moralmente e existencialmente, os ideais, afirmações, praxis rivais da cidade de Sócrates e da cidade de Isaías.”; “A nossa matemática tem sido «grega» […]. O vocabulário das nossas teorias e o dos nossos conflitos políticos e sociais, do nosso atletismo e da nossa arquitectura, dos nossos modelos estéticos e das nossas ciências naturais permanece saturada de raízes gregas…”; “O desafio monoteísta, a definição da nossa humanidade enquanto diálogo com o transcendente, o conceito de um Livro Supremo, a nossa do direito como algo inextrincável em relação aos mandamentos morais […] têm origem na singularidade enigmática e na dispersão de Israel.”
V — Consciência própria (a expectativa do apocalipse): “O meu quinto critério é uma consciência própria escatológica que, segundo creio, pode ser exclusiva da consciência europeia.”; “A Cristandade nunca abandonou completamente essa expectativa de um fim para o nosso mundo …”; “Duas guerras mundiais, que, na verdade, foram duas guerras civis europeias, conduziram esta intimação ao ponto de ebulição…”.
Através desta espécie de guião, Steiner aviva a europaicidade que nos é comum, tocando em questões sensíveis como as diferenças étnicas ou os complexos linguísticos na sua riqueza e conflitualidade. Importam sobremaneira os avisos que deixa e a convicção esperançada de que a Europa resistirá, apesar de tudo, sendo que “apesar de tudo” implica por exemplo a vaga agnóstica (em substituição do cristianismo) ou a fuga de cérebros (científicos e intelectuais) para os Estados Unidos.
Aliás, este é o derradeiro tocado, no qual o autor deixa este sublinhado: “É desesperadamente urgente fazermos cessar, na medida do possível, a saída dos nossos melhores jovens talentos científicos (mas também humanísticos) da Europa devido às ofertas edénicas dos Estados Unidos.”
Com prefácio de Durão Barroso e Rob Riemen, A Ideia de Europa afigura-se uma leitura incontornável, leve e penetrante, tanto mais que pelo actual contexto europeu, pautado por um profundo eurocepticismo.
Texto do Prof. João Ricardo Lopes