sábado, 23 de maio de 2009

Dois contos de Sophia



De entre os muitos títulos que integram o Plano Nacional de Leitura, alguns constituem achados maravilhosos para as crianças, como é o caso dos contos de Sophia de Mello Breyner Andresen. São eles narrativas fundamentais para os mais jovens, tanto pela riqueza dos temas explorados, como pela linguagem utilizada, como ainda pelo universo “maravilhoso” a que recorrem, lembrando as mais conhecidas histórias do mundo, caso das que fazem parte das antologias orientais (das «Mil e uma noites», por exemplo), ou ocidentais (contos de Grimm, Perrault ou Andersen).

Curiosamente, e apesar das diferenças de assunto existentes entre esses contos de Sophia (ao todo são oito os seus contos infantis), verifica-se neles muitas semelhantes de estrutura, de linguagem, de estilo e até de filosofia de vida. Exemplificarei esse facto com os contos «A Menina do Mar» e «A Floresta», estabelecendo e comprovando várias aproximações.

Característica habitual nesses textos é eles começarem com a fórmula tradicional do «Era uma vez…», seguindo-se uma descrição pormenorizado da casa e do espaço envolvente. N’ «A Menina do Mar» escreve: “Era uma vez uma casa branca nas dunas voltada para o mar. Tinha uma porta, sete janelas e uma varanda de madeira pintada de verde. Em roda da casa havia um jardim de areia (…). Nessa casa morava um rapazito que passava os dias a brincar na praia. Era uma praia muito grande e quase deserta onde havia rochedos maravilhosos.” N’ «A Floresta», escreve Sophia: “Era uma vez uma quinta toda cercada de muros. Tinha arvoredos maravilhosos e antigos, lagos, fontes, jardins, pomares, bosques, campos e um grande parque seguido por um pinhal que avançava quase até ao mar. (…) Quem entrava via logo uma grande casa rodeada de tílias altíssimas (…). Era nessa casa que morava Isabel. Isabel nesse tempo tinha onze anos (…)”.
Nos dois contos, o leitor é convidado a entrar no cenário, onde o espera um mundo exótico (é usado o adjectivo “maravilhosos” nas duas histórias), e heróis da mesma faixa etária dos leitores (um “rapazito” e Isabel, que tem “onze anos”). Como bónus, segue-se em ambos uma descrição muito pormenorizada do espaço, com ricas enumerações de elementos, através do qual se percebe o propósito da autora de recuperar os quatro elementos primordiais do universo: a terra (areia, jardins, quinta), a água (mar, lagos), o ar (vento, brisa) e o fogo (luz e sol). Veja-se um pequeno exemplo: “(…) na maré vazia as rochas apareciam cobertas de limo, de búzios, de anémonas, de lapas, de algas e de ouriços. Havia poças de água, rios, caminhos, grutas, arcos, cascatas. Havia pedras de todas as cores e feitios, pequeninas e macias, polidas pelas ondas (…)” (cf. «A Menina do Mar»). “Na estufa enorme, sob o telhado de vidro caiado, o ar era húmido e quente. Aí cresciam avencas maravilhosas, finas e leves, as begónias roxas, as orquídeas verdes e sarapintadas com o seu ar de bichos venenosos, e outras plantas e flores que tinham os seus nomes esquisitos escritos numa placa de alumínio atada a seus pés com ráfia” (cf. «A Floresta»).

Percebe-se a importância da amplitude do espaço (“Era uma praia muito grande…” e “Era (…) uma quinta toda cercada de muros. Tinha arvoredos (…), lagos, fontes, jardins, pomares, bosques e um grande parque seguido por um pinhal que avançava até ao mar”). Tanto a praia como a quinta, pela sua dimensão, representam ao mesmo tempo lugares de evasão e de refúgio. As personagens encontram o palco ideal para as suas incursões e explorações, acabando por ser premiadas com descobertas fantásticas. N’ «A Menina do Mar», o leitor é preparado pare esse encontro, que assinala o fim da exposição, a partir do momento em que o rapazinho, graças à sua curiosidade, envereda por um caminho deserto (“Ia andando para o sul da praia que era um deserto para onde nunca ninguém ia”). Já n’ «A Floresta», Isabel, em virtude também da sua curiosidade, “dirigiu-se para um pequeno bosque que ficava perto da casa. Era um lugar muito solitário onde nunca passava ninguém.” Habilidosamente, a narração espevita o interesse do leitor, condu-lo a um ponto sem retorno, em que se espera que algo aconteça: assim, no primeiro conto, o rapaz é premiado com a descoberta da Menina do Mar (“aconteceu de repente uma coisa extraordinária (…). Era como uma gargalhada humana, mas muito mais pequenina, mais fina e muito clara. (…) A menina, que devia medir um palmo de altura, tinha cabelos verdes, olhos roxos e um vestido feito de algas encarnadas”). Paralelamente, Isabel, embora o tivesse procurado, é premiada com um achado, também ele, extraordinário (“… dentro da casa tinha acontecido uma coisa extraordinária e incrível: Em cima da cama estava deitado um verdadeiro anão. (…) Mediu-o com o olhar e calculou que ele devia ter exactamente um palmo de altura…”).

Sophia convoca nas duas situações o valor da curiosidade, enquanto instrumento de descoberta, ocorrendo os encontros (do rapazito com a menina do mar e de Isabel com o anão) no início do Outono, cada qual com o seu fascínio e requinte descritivo. Acresce que nas duas narrativas, o medo inicial das pequenas criaturas pelos humanos (semelhante ao dos animais) é motivo de promessas e pactos, princípio basilar da confiança recíproca e da amizade (a lembrar a pequena raposa e o Principezinho de Antoine de Saint-Exupéry): “Não grites, não chores. Eu não te faço mal nenhum. (…) Prometes que não foges? // Prometo” (Cf. «A Menina do Mar»); “Eu não te faço mal nenhum, não tenhas medo de mim — pediu Isabel. (…) Prometes que voltas? // Prometo — disse ele solenemente”).

Segue cada narrativa o seu fio condutor, aberto, omniscientemente trabalhado, em «A Menina do Mar», com a narrativa na primeira pessoa da Menina e com a troca de presentes (sinalizando a união entre a terra e o mar), em «A Floresta», com a narrativa na primeira pessoa do Anão, partilhando um passado misterioso e um tesouro escondido. À palavra é conferido um poder mágico, transformador, alquímico, havendo um forte apelo aos sentidos e ao sensorialismo, assim como à aventura, à solidariedade e ao desenho tradicional do maniqueísmo: tanto em «A Menina do Mar», como em «A Floresta» estrutura-se o bem e o mal, através de personagens heróicas e vilãs, adjuvantes e oponentes — a Grande Raia é a vilã da primeira história, como os bandidos o são na segunda; os polvos e os búzios são oponentes, tal como os homens de negócios e as pessoas hipócritas n’ «A Floresta». São entidades do bem os amigos da Menina (o Caranguejo, o Peixe e o Polvo), como o são os frades e os anões.

Povoados de criaturas fantásticas, irreais, antropomorfizadas, estas histórias adensam o poder de atracção e a moralidade e ou as moralidades com que o leitor tem de se deparar: se a prisão do oceano (“O mar é uma prisão gelada”) entristece a Menina, o tesouro dos bandidos é a prisão do Anão (“…há mais de duzentos anos que eu aqui estou sozinho, longe dos meus amigos e parentes, preso entre os muros desta quinta, amarrado ao tesouro dos bandidos!”). A libertação de ambos só será possível com a união de esforços, de sacrifício, de lealdade e de solidariedade.

É nestes moldes que se opera a exposição–conflito–resolução nos dois contos. Simples crianças, como o rapaz e Isabel, são chamados a participar numa aventura, em que a sua existência é fundamental. Se o rapaz tem vontade de conhecer o fundo do mar, Isabel quer conhecer a vida secreta dos anões. E é esta vontade que os torna distintos e heróis. A confiança e a amizade têm o condão de alterar o rumo dos acontecimentos, simbolizadas no filtro, que permitirá ao primeiro viajar muitos dias no mar sem se afogar, e no tesouro, que, tendo sido acumulado com a malvadez dos bandidos, será distribuído pelos pobres, salvando ainda a honra do alquimista fracassado. A amizade vence a divisão/ separação de mundos (terra e mar) e de tempos (passado e futuro). E porque a virtude sempre triunfa, ambas as histórias encontram o seu final feliz, semelhantes aos grandes contos de fadas da tradição oral e popular.

Para além do já referido apelo ao maravilhoso (mundo feérico), assim como à busca de conhecimento e partilha de saberes, Sophia de Mello Breyner Andresen acentua nos dois contos, à semelhança de outros, aliás, a visão poética e humana da realidade. Convoca o olhar do leitor, das crianças, para o quotidiano, para a beleza das coisas, dos objectos, da natureza, do tempo, das estações, do que é simples e tocante. Assim, a espuma pode ser tão delicada e luminosa como “castelos fantásticos”. Tal como um tronco de carvalho “escuro, enorme e rugoso” pode ser abrigo de “pequenas cavernas”. É um maravilhoso diferente daquele que nos chega de uma menina que confessa poder “respirar dentro de água como os peixes e (…) respirar fora de água como os homens”, ou de um anão com “trezentos anos”.

Julgo que um laivo oralizante penetra estas histórias. Ora num mundo marcadamente estafado e empirista como o nosso, marcadamente cheio e vazio ao mesmo tempo, o convite a que regressemos a estas histórias importa lembrá-lo e recordá-lo. Elas valem bem a pena, tão ricas que são em tudo o que hoje escasseia.

Texto: Professor João Ricardo Lopes