O lugar onde encontrava sempre uma paz semelhante à de uma igreja vazia era a Biblioteca Municipal. Entrava nela com sobressalto, perquirindo as estantes como quem adivinha um chamamento na forma de um título aceso e incógnito. Além disso, gostava do odor do soalho nas folhas envelhecidas. Alguns livros tinham o perfume da lenha seca, outros o cheiro fresco de vernizes e colas, igual àquele que havia nos manuais escolares em Setembro.
Vincava-se nos livros uma expressão inexplicável de sagrado. Nenhum outro objecto o conseguia assim. Havia também o tacto, os diferentes tipos, formatos e espessuras de papel, as lombadas (algumas fulminantes e certeiras), havia o aparato das mesinhas muito aprumadas e limpas, ao contrário das mesas da escola, o sortilégio da luz com as suas asas abertas, alongando-se pelas janelas das várias salinhas, havia o imenso saber dos milénios, sereno, pachorrento, solene, a convidar, a convocar-nos ao seu interior misterioso.
Foi desde o ciclo, no tempo da velhinha Montelongo, que me tornei íntimo das várias salas de estudo na Casa Municipal da Cultura de Fafe. Era o tempo da mochila gigante a ocupar-nos mais de metade do tronco. Nessa idade mágica, o professor de Língua Portuguesa seduzia-nos com excertos de obrinhas geniais, como A Menina do Mar, O Príncipe Feliz, A Aldeia das Flores, Pica-Pico e a Gaivota Laila, Como se faz Cor de Laranja, ou a incrível aventura d’ O Meio Galo de Luísa Ducla Soares.
De todos os contos e histórias que li nesses dias ficou-me uma devoção especial pel’ O Cavaleiro da Dinamarca de Sophia de Mello Breyner Andresen e pela fábula O Rouxinol de Hans Christian Andersen, a que se juntariam com o passar dos anos o Romance da Raposa de Aquilino Ribeiro, O Principezinho de Saint-Exupéry, ou a espantosa e aclamada colecção Uma Aventura de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada.
Essas leituras conduziram-me em meandros nunca antes calcorreados pela imaginação e espicaçaram o gosto de espreitar sempre mais no interior dos livros. Havia palavras estranhas, palavras para as quais o dicionário dava às vezes uma explicação confusa e que só anos mais tarde pude compreender realmente, saciando assim uma espécie de fome em aberto.
Esses livros ocupam ainda hoje um lugar mítico na minha existência. Eles recordam muito do que fui e do como me tornei naquilo que sou. Os contos chegaram primeiro, só mais tarde os romances, a poesia e o teatro. Um dia, requisitei na Biblioteca um inusitado livro com o título O Lugre, de Bernardo Santareno. Lá vinham sem mordaça os palavrões do dia-a-dia, a rotina difícil dos pescadores, o realismo dos quotidianos despidos de magia. Foi o primeiro livro duro que li e com ele vieram outros, Os Esteiros de Soeiro Pereira Gomes, os Contos da Montanha de Miguel Torga, Os Putos de Altino Tojal.
Fui também adquirindo livros, alicerçando o meu espólio, o meu espaço. Algumas marcas minhas lá permanecem. Outros carregam vestígios de leitores desconhecidos e descuidados, frases na folha de rosto, no cólofon, às vezes nas badanas, no índice. Elas dizem do interesse ou desinteresse com que foram folheados. Habituei-me a encontrar fragmentos pessoais, fios de cabelo, areias da praia, recados e bilhetes de comboio, às vezes marcas de unhas, às vezes traços de lápis nervosos e agitados, às vezes ainda pequenas glosas com letra miudinha e bonita. São como pequenas histórias interseccionadas pelo destino.
Recentemente, eu próprio passei a escrever livros. Durante anos sonhei com essa realização. O primeiro teve o condão de despertar em mim uma serenidade misturada com orgulho. Depois vieram outros. Nada conta melhor quem sou. Em todos eles, naturalmente, há histórias implicadas, cenários cómicos, jogos dramáticos, e pessoas, idílios, recordações. E o livro, que sempre foi para mim, um melhor amigo, um informador, o atencioso companheiro de férias, das noites, de dias solitários e pungentes, passou a ouvir-me, a receber-me, a partilhar-me.
Ocorrem-me, para terminar esta crónica, as palavras de Eugénio de Andrade no poema Num Exemplar das Geórgicas:
Os livros. A sua cálida,
terna, serena pele. Amorosa
companhia. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais…
João Ricardo Lopes, in Dos Maus e Bons Pecados
Vincava-se nos livros uma expressão inexplicável de sagrado. Nenhum outro objecto o conseguia assim. Havia também o tacto, os diferentes tipos, formatos e espessuras de papel, as lombadas (algumas fulminantes e certeiras), havia o aparato das mesinhas muito aprumadas e limpas, ao contrário das mesas da escola, o sortilégio da luz com as suas asas abertas, alongando-se pelas janelas das várias salinhas, havia o imenso saber dos milénios, sereno, pachorrento, solene, a convidar, a convocar-nos ao seu interior misterioso.
Foi desde o ciclo, no tempo da velhinha Montelongo, que me tornei íntimo das várias salas de estudo na Casa Municipal da Cultura de Fafe. Era o tempo da mochila gigante a ocupar-nos mais de metade do tronco. Nessa idade mágica, o professor de Língua Portuguesa seduzia-nos com excertos de obrinhas geniais, como A Menina do Mar, O Príncipe Feliz, A Aldeia das Flores, Pica-Pico e a Gaivota Laila, Como se faz Cor de Laranja, ou a incrível aventura d’ O Meio Galo de Luísa Ducla Soares.
De todos os contos e histórias que li nesses dias ficou-me uma devoção especial pel’ O Cavaleiro da Dinamarca de Sophia de Mello Breyner Andresen e pela fábula O Rouxinol de Hans Christian Andersen, a que se juntariam com o passar dos anos o Romance da Raposa de Aquilino Ribeiro, O Principezinho de Saint-Exupéry, ou a espantosa e aclamada colecção Uma Aventura de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada.
Essas leituras conduziram-me em meandros nunca antes calcorreados pela imaginação e espicaçaram o gosto de espreitar sempre mais no interior dos livros. Havia palavras estranhas, palavras para as quais o dicionário dava às vezes uma explicação confusa e que só anos mais tarde pude compreender realmente, saciando assim uma espécie de fome em aberto.
Esses livros ocupam ainda hoje um lugar mítico na minha existência. Eles recordam muito do que fui e do como me tornei naquilo que sou. Os contos chegaram primeiro, só mais tarde os romances, a poesia e o teatro. Um dia, requisitei na Biblioteca um inusitado livro com o título O Lugre, de Bernardo Santareno. Lá vinham sem mordaça os palavrões do dia-a-dia, a rotina difícil dos pescadores, o realismo dos quotidianos despidos de magia. Foi o primeiro livro duro que li e com ele vieram outros, Os Esteiros de Soeiro Pereira Gomes, os Contos da Montanha de Miguel Torga, Os Putos de Altino Tojal.
Fui também adquirindo livros, alicerçando o meu espólio, o meu espaço. Algumas marcas minhas lá permanecem. Outros carregam vestígios de leitores desconhecidos e descuidados, frases na folha de rosto, no cólofon, às vezes nas badanas, no índice. Elas dizem do interesse ou desinteresse com que foram folheados. Habituei-me a encontrar fragmentos pessoais, fios de cabelo, areias da praia, recados e bilhetes de comboio, às vezes marcas de unhas, às vezes traços de lápis nervosos e agitados, às vezes ainda pequenas glosas com letra miudinha e bonita. São como pequenas histórias interseccionadas pelo destino.
Recentemente, eu próprio passei a escrever livros. Durante anos sonhei com essa realização. O primeiro teve o condão de despertar em mim uma serenidade misturada com orgulho. Depois vieram outros. Nada conta melhor quem sou. Em todos eles, naturalmente, há histórias implicadas, cenários cómicos, jogos dramáticos, e pessoas, idílios, recordações. E o livro, que sempre foi para mim, um melhor amigo, um informador, o atencioso companheiro de férias, das noites, de dias solitários e pungentes, passou a ouvir-me, a receber-me, a partilhar-me.
Ocorrem-me, para terminar esta crónica, as palavras de Eugénio de Andrade no poema Num Exemplar das Geórgicas:
Os livros. A sua cálida,
terna, serena pele. Amorosa
companhia. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais…
João Ricardo Lopes, in Dos Maus e Bons Pecados