sexta-feira, 17 de abril de 2020

De volta às aulas, à distância...

Morreu Luís Sepúlveda, vítima de Covid19, aos setenta anos de idade.
Como bibliotecária e leitora da sua obra, quero deixar aqui algumas palavras, muito sentidas. E é com muita tristeza que escrevo estas linhas! Sei que já não poderei ouvir as suas extraordinárias histórias de tão elevado humanismo, numa qualquer conferência das Correntes de Escritas. Sei que não experimentarei mais o espanto por um novo título, acabado de ser publicado, como aconteceu, por exemplo, com o entusiasmante "História de um caracol que descobriu a importância da lentidão".
É um dos autores mais lidos e mais amados pelos leitores desta Biblioteca. Muitos começaram a ser leitores depois de se terem deixado arrebatar pela "História da gaivota e do gato que a ensinou a voar" e outros amadureceram a sua competência de ler com "O velho que lia romances de amor".
Alguns "Encontros com Livros", ao longo destes últimos anos, realizados na Biblioteca, foram dedicados a Sepúlveda e a algumas das suas mais incríveis personagens, como o gato que ensinou a gaivota a voar, o Velho íntegro António José Bolívar Proano, ou o próprio Sepúlveda, viajante no "Expresso da Patagónia", amante da maravilhosa tragédia da vida.
Não são só as histórias plenas e densas, magistralmente narradas em dezenas de páginas. É também a poesia das palavras, das suas metáforas que nos prendem à leitura, como se estivéssemos lá, a ver passar "a eternidade verde do rio" ou a ver a "mantilha de veludo azul" que "conferia dignidade à cabeça" da mulher "sem ocultar de todo a brilhante cabeleira negra, dividida ao meio, numa viagem vegetal até às costas." 
Que palavras escolher, que possam representar o carácter humanista e tantas vezes desconcertante dos seus textos? Talvez estas:

"Lia lentamente, juntando as sílabas, murmurando-as a meia voz como se saboreasse, e, quando tinha a palavra inteira dominada, repetia-a de uma só vez. Depois fazia o mesmo com a frase complexa, e desta maneira se apropriava dos sentimentos e ideias plasmados nas páginas.
Quando havia uma passagem que lhe agradava especialmente, repetia-a muitas vezes, todas as que achasse necessárias para descobrir como a linguagem humana também pode ser bela.
Lia com o auxílio de uma lupa, o segundo dos seus pertences mais queridos. O primeiro era a dentadura postiça."
in "O velho que lia romances de amor"


Publicado pela bibliotecária Ana Paula Alves